Neste final de ano, em que muitos se dedicaram ao nosso desafio e estão agora desfrutando do merecido descanso, venho trazer um texto um pouco diferente dos que geralmente publico aqui.
Para começar, não é um texto inédito: foi publicado inicialmente no jornal Tribuna Sanjoanense, de São João del-Rei, que é, com muitos de vocês sabem, minha terra natal. Também não foi escrito por mim, mas pelo filósofo e professor Evandro Coelho. O texto é bem divertido, sigam até o final.
lNTERPRETAÇÃO
DE TEXTOS
Evandro
Coelho
Quando encontramos preciosidades
literárias como estas que abaixo transcreveremos, paramos para pensar na
possibilidade de um cidadão comum entendê-las. Vejamos: “Era um varão escançado que nunca se mostrara largueado, e seu convívio
despertava a fama de mendacíssimo e lançadiço”. Pois é, mas não há
taralhão, tarambela ou taralheta que não se amoire a maragrifas de pararacas;
isto é
claro
para nós, percucientes no uso de calepinos e dicionários.
Para quem estes textos foram
produzidos? Nada comunicam ao cidadão comum.
Vocabulário é um produto
cultural, representando ou apresentando as idéias e as ideologias, as crenças jurídicas e éticas, as
filosofias, as ciências e as tecnologias. Quem
teve
meios monetários suficientes para o ensino acadêmico anterior às reformas
Campos e Capanema, quando as escolas eram poucas para alfabetizar e eram mínimas para os
estudos posteriores ao primário,
terminava cursos superiores de Medicina, Direito, Odontologia, etc. e eram
chamados socialmente como "Doutor",
sem
teses
apresentadas
e
defendidas
perante bancas necessárias para esse título. Uma explicação dos usos da
linguagem pode e deve ser assunto da Sociologia no estudo dos produtos culturais e suas
causas.
Quando os seminários recebiam
postulantes das classes menos favorecidas, treinavam vocabulários “bonitos”, nos quais a
sonoridade vocabular valia mais que o conteúdo expressivo. É um fundamento marcante na
sociedade de 90% de católicos obedientes a tudo que “seu
padre" mandar.
O Hino do
Congresso Eucarístico
de
Belo
Horizonte
pode
ser exemplo de texto para iniciados presbíteros ou antístites. É assim: “Qual
resplende em manhãs purpurinas / o sublime clarão do arrebol / do altar das
montanhas de Minas / brilha
a hóstia mais fúlgido sol...”
São produtos iguais ao Hino Nacional,
mais conhecido. Foi
contada nas efemérides familiares de pessoas conhecidas uma
conversação sobre palavras properispômenas, e pareceu muito difícil para os não
potentados linguistas. Pelo nome, apenas pelo nome das palavras...
Entre os entendidos e os
não-entendidos dos vocabulários, como se nota, fica um abismo de conflito
social não declarado:
os que
entendem, intrinsecamente parnasianos, e os que simplesmente não entendem.
Os linguistas não podem se descuidar
das análises
sociais dos tempos em que as línguas atuais foram formadas, a partir de uma
outra língua, comum a várias outras. É o que podemos denominar "base
existencial" de cada uma das linguagens.
As bases sociais são semelhantes?
Houve influências de posições sociais, de classes sociais, de papéis sociais, de
estruturas de
grupo como universidades, toda a burocracia, as academias literárias ou
não, as seitas
religiosas,
os políticos buscando o poder, de notáveis situações históricas, dos interesses
sociais
aparentes, se houver indícios de mobilidade social. Houve influência das chamadas bases culturais -
mais
difíceis de
identificar nas origens - que os alemães identificam em seus estudos como
"Vilkgeist” e "Zeitgeist" dos valores vigentes dos
tipos de cultura, da "Weltanchauung"
(visão do mundo cultural). São pesquisas difíceis para os não-sociólogos, são bases existenciais.
Sem elas,
nada
acontece.
Quais são os produtos mentais que os
sociólogos vão pesquisar? Produtos são as crenças morais
(diferentes das crenças), as ciências “em moda”, as tecnologias
necessárias vida diária. A seleção desses produtos é tarefa básica pelo
objetivo das atividades intelectuais. Robert Merton, em “Twentieth Century
Sociology”, apontou o relacionamento entre os produtos mentais e as bases existenciais. Há
relações causais ou funcionais, relações simbólicas, usando termos ambíguos
para designar as relações. A explicação geral, o porquê, o condicionamento
existencial é
para
manter
o poder, a estabilidade, favorecer motivações, desviar críticas e hostilidades,
coordenar as relações sociais.
As relações se evidenciam
entre
a
base
existencial e o conhecimento estudando sociedades ou culturas específicas, limitadamente ou propondo uma
teoria analítica geral, o que dificulta o estudo.
Pode-se se afirmar agora que a verdade
sociológica é
função das
bases sociais ou culturais vigentes. É o significado das
palavras alemãs
que usei - “Volk" é povo e "Zeit" é tempo. Cada
agrupamento social tem seu produto mental firmado na base existencial. No
Brasil aparecem dificuldades entre o nordestino e nós mineiros. De Mossoró, terras
potiguares, recebemos um precioso dicionário potiguês, que nos fala desde a orelha: “Eita piúla, esse dicionário tá mesmo tampa de
furico. Prá você que num sabe o que quer dizer arenga, folote, empanzinado ou
mesmo boréia, taqui um pouco da cultura potiguar prá você aprender a grear. Eita
livrinho primeira!”
Abrindo o dicionário, aqui e ali: “bater
a caçuleta, bascuio, borréia, breado, califon, a caningar, caritó, crica, desenchavido,
encangado, engilhado, folote, frechado, fuinha,
godela,
grear, imbiocar, jerimum, leseira, maloqueiro, maldar, pantim, prangolé,
peinha, priziaca, queixudo, reeira, remanchar, reçolho, sapigaitada,
sarrabuiá, tempo-de-bumba, ticar, tisgo, trubufu, virar-bunda-casaca, xeleléu,
xurumela, zambeta, zoner”.
Exemplos de nomes próprios: “Amarildes,
Antoneilton, Denilde, Geonaldo, Gorgônio, Jocildo, Lindomilde, Malvilael, Railson,
Zilena”.
E o tempo? Os ferroviários antigos sabem
até hoje o
que faz o foguista, o
maquinista, o guarda-freios, o guarda-chaves, o agente, o conferente. Na
medicina não se fala mais de apoplexia, ventre-virado, nó-na-tripa; ninguém é
estrupício e os meninos ganharam bola de "peneu"; há muitos anos se dizia que “o Dr. Tancredinho é lugar-tenente do Dr. Augusto”. Ou que a porca torce
o rabo quando está no fio da navalha, triste como o canto das Beús do Enterro. Não há
mais café requentado ou “com o rabo entre as pernas”, alguém que vira-casaca ou
está
frito. Não se anda mais à tôa, não se vai à casa de Mãe Joana, não
se “mata o bicho” antes do almoço e não podemos deixar de atender a desejos de mulher grávida.
Depois de ler, não parar
para pensar, que assim morreu um burro. E me desculpem o vocabulário!