quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Interpretação de textos

Neste final de ano, em que muitos se dedicaram ao nosso desafio e estão agora desfrutando do merecido descanso, venho trazer um texto um pouco diferente dos que geralmente publico aqui. 

Para começar, não é um texto inédito: foi publicado inicialmente no jornal Tribuna Sanjoanense, de São João del-Rei, que é, com muitos de vocês sabem, minha terra natal. Também não foi escrito por mim, mas pelo filósofo e professor Evandro Coelho. O texto é bem divertido, sigam até o final. 


lNTERPRETAÇÃO DE TEXTOS
Evandro Coelho

            Quando encontramos preciosidades literárias como estas que abaixo transcreveremos, paramos para pensar na possibilidade de um cidadão comum entendê-las. Vejamos: Era um varão escançado que nunca se mostrara largueado, e seu convívio despertava a fama de mendacíssimo e lançadiço”. Pois é, mas não há taralhão, tarambela ou taralheta que não se amoire a maragrifas de pararacas; isto é claro para nós, percucientes no uso de calepinos e dicionários.
            Para quem estes textos foram produzidos? Nada comunicam ao cidadão comum.
            Vocabulário é um produto cultural, representando ou apresentando as idéias e as ideologias, as crenças jurídicas e éticas, as filosofias, as ciências e as tecnologias. Quem
teve meios monetários suficientes para o ensino acadêmico anterior às reformas Campos e Capanema, quando as escolas eram poucas para alfabetizar e eram mínimas para os estudos posteriores ao primário, terminava cursos superiores de Medicina, Direito, Odontologia, etc. e eram chamados socialmente como "Doutor", sem teses apresentadas e defendidas perante bancas necessárias para esse título. Uma explicação dos usos da linguagem pode e deve ser assunto da Sociologia no estudo dos produtos culturais e suas causas.
            Quando os seminários recebiam postulantes das classes menos favorecidas, treinavam vocabulários “bonitos”, nos quais a sonoridade vocabular valia mais que o conteúdo expressivo. É um fundamento marcante na sociedade de 90% de católicos obedientes a tudo que “seu padre" mandar. O Hino do Congresso Eucarístico de Belo Horizonte pode ser exemplo de texto para iniciados presbíteros ou antístites. É assim: “Qual resplende em manhãs purpurinas / o sublime clarão do arrebol / do altar das montanhas de Minas / brilha a hóstia mais fúlgido sol...”
            São produtos iguais ao Hino Nacional, mais conhecido. Foi contada nas efemérides familiares de pessoas conhecidas uma conversação sobre palavras properispômenas, e pareceu muito difícil para os não potentados linguistas. Pelo nome, apenas pelo nome das palavras...
            Entre os entendidos e os não-entendidos dos vocabulários, como se nota, fica um abismo de conflito social não declarado: os que entendem, intrinsecamente parnasianos, e os que simplesmente não entendem.
            Os linguistas não podem se descuidar das análises sociais dos tempos em que as línguas atuais foram formadas, a partir de uma outra língua, comum a várias outras. É o que podemos denominar "base existencial" de cada uma das linguagens.
            As bases sociais são semelhantes? Houve influências de posições sociais, de classes sociais, de papéis sociais, de estruturas de grupo como universidades, toda a burocracia, as academias literárias ou não, as seitas religiosas, os políticos buscando o poder, de notáveis situações históricas, dos interesses sociais aparentes, se houver indícios de mobilidade social. Houve influência das chamadas bases culturais - mais difíceis de identificar nas origens - que os alemães identificam em seus estudos como "Vilkgeist e "Zeitgeist" dos valores vigentes dos tipos de cultura, da "Weltanchauung" (visão do mundo cultural). São pesquisas difíceis para os não-sociólogos, são bases existenciais. Sem elas, nada acontece.
            Quais são os produtos mentais que os sociólogos vão pesquisar? Produtos são as crenças morais (diferentes das crenças), as ciências “em moda”, as tecnologias necessárias vida diária. A seleção desses produtos é tarefa básica pelo objetivo das atividades intelectuais. Robert Merton, em “Twentieth Century Sociology”, apontou o relacionamento entre os produtos mentais e as bases existenciais. Há relações causais ou funcionais, relações simbólicas, usando termos ambíguos para designar as relações. A explicação geral, o porquê, o condicionamento existencial é para manter o poder, a estabilidade, favorecer motivações, desviar críticas e hostilidades, coordenar as relações sociais.
            As relações se evidenciam entre a base existencial e o conhecimento estudando sociedades ou culturas específicas, limitadamente ou propondo uma teoria analítica geral, o que dificulta o estudo.
            Pode-se se afirmar agora que a verdade sociológica é função das bases sociais ou culturais vigentes. É o significado das palavras alemãs que usei - “Volk" é povo e "Zeit" é tempo. Cada agrupamento social tem seu produto mental firmado na base existencial. No Brasil aparecem dificuldades entre o nordestino e nós mineiros. De Mossoró, terras potiguares, recebemos um precioso dicionário potiguês, que nos fala desde a orelha: “Eita piúla, esse dicionário tá mesmo tampa de furico. Prá você que num sabe o que quer dizer arenga, folote, empanzinado ou mesmo boréia, taqui um pouco da cultura potiguar prá você aprender a grear. Eita livrinho primeira!
            Abrindo o dicionário, aqui e ali: “bater a caçuleta, bascuio, borréia, breado, califon, a caningar, caritó, crica, desenchavido, encangado, engilhado, folote, frechado, fuinha,
godela, grear, imbiocar, jerimum, leseira, maloqueiro, maldar, pantim, prangolé, peinha, priziaca, queixudo, reeira, remanchar, reçolho, sapigaitada, sarrabuiá, tempo-de-bumba, ticar, tisgo, trubufu, virar-bunda-casaca, xeleléu, xurumela, zambeta, zoner”.
            Exemplos de nomes próprios: “Amarildes, Antoneilton, Denilde, Geonaldo, Gorgônio, Jocildo, Lindomilde, Malvilael, Railson, Zilena”.
            E o tempo? Os ferroviários antigos sabem até hoje o que faz o foguista, o maquinista, o guarda-freios, o guarda-chaves, o agente, o conferente. Na medicina não se fala mais de apoplexia, ventre-virado, nó-na-tripa; ninguém é estrupício e os meninos ganharam bola de "peneu"; há muitos anos se dizia que “o Dr. Tancredinho é lugar-tenente do Dr. Augusto”. Ou que a porca torce o rabo quando está no fio da navalha, triste como o canto das Beús do Enterro. Não há mais café requentado ou “com o rabo entre as pernas”, alguém que vira-casaca ou está frito. Não se anda mais à tôa, não se vai à casa de Mãe Joana, não se mata o bicho” antes do almoço e não podemos deixar de atender a desejos de mulher grávida.
            Depois de ler, não parar para pensar, que assim morreu um burro. E me desculpem o vocabulário!

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