sexta-feira, 4 de março de 2016

Desigualdade de gênero em concursos jurídicos no Brasil

Eu gostaria de iniciar o mês de março de 2016 escrevendo um texto não sobre como passar em concursos, ou técnicas para passar em concursos, mas sobre um assunto que nunca abordei: quem passa em concursos. Ou melhor, a desigualdade das pessoas que passam em concursos.

É sabido que, desde que as carreiras públicas jurídicas se tornaram financeiramente atraentes e, com isso, altamente concorridas, estudar para concursos é um empreendimento caro. Logo, há uma desigualdade financeira marcante entre os aprovados nos concursos de nível mais alto. Ou o candidato vem de uma família abastada, que pode pagar pelo seu tempo de estudo e, além disso, pelos insumos necessários para tanto – livros, cursos etc. – ou ele precisa passar em um concurso de menor nível primeiro, para depois se arriscar em concursos entendidos como de ponta. 

Nessa segunda situação, esse candidato precisa combinar trabalho e estudo, um tema delicado, sobre o qual já tratei algumas vezes aqui. Além disso, ele transforma em “trampolim” algumas carreiras, que passam a ter que lidar com um grau de rotatividade elevado dos ocupantes de seus cargos e os problemas que disso derivam, Para encurtar a história, um pobre não vira juiz no Brasil. Primeiro ele precisa deixar de ser pobre, passar a ser pelo menos de classe média, para depois ser juiz.

Em segundo lugar, há o problema racial. É certo que mais brancos que negros se tornam servidores públicos. Esse vem sendo amplamente discutido no país, especialmente após a Lei 12.990/14, que reservou aos candidatos autodeclarados pretos e pardos, 20% das vagas em cargos públicos. Recentemente, publiquei um artigo sustentando que essa lei é inconstitucional. Vou disponibilizá-lo no meu perfil do academia.edu para quem quiser ler. O argumento é muito complexo e não é o meu tema de hoje.

O que pretendo tratar aqui é da desigualdade de gênero em concursos públicos para a Magistratura e o Ministério Público. Minha hipótese é simples. Ao conviver, já por dez anos, com magistrados e membros do Ministério Público, me parece que o número de mulheres aprovadas nesses concursos é muito baixo. Se a população brasileira é composta de aproximadamente 51% de mulheres e 49% de homens, e se nós vivemos em uma sociedade na qual existe igualdade de gênero, seria de se esperar que o número de aprovados, em qualquer concurso, girasse em torno de metade homens e metade mulheres.

Com essa hipótese em mente, levantei informações de 10 concursos, realizados recentemente, para testar sua validade. Vamos aos dados:  

Concurso
Homens
Mulheres
MPF Procurador da República – 27º
54
17
MPF – Procurador da República – 26º
62
27
MPF – Procurador da República – 25º
53
18
Magistratura Estadual – SP – 185º concurso - 2015
41
41
Tribunal Regional Federal da 4ª Região – 2015
9
5
Tribunal Regional Federal da 4ª Região – 2013
18
10
Tribunal Regional Federal da 1ª Região – 2014
39
17
Tribunal Regional Federal da 5ª Região - 2014
14
8
Tribunal Regional Federal da 5ª Região – 2012
15
3
MP Minas Gerais – 2013
19
14
MP São Paulo – 2014
46
36
MP São Paulo – 2013
46
34

Algumas considerações metodológicas: 1 – não é muito fácil encontrar os dados online. Os Tribunais Regionais Federais da 3ª e 4ª Regiões não mantêm na internet a lista de aprovados em seus concursos já encerrados, apenas as provas anteriores. Precisei de alguma ajuda do Google para buscar os dados. 2 – Há alguns poucos nomes em relação aos quais tive que supor o gênero do candidato, mas não acredito que isso tenha impacto estatístico sobre o resultado. 3 – Fiz a contagem dos nomes manualmente, o que pode, evidentemente, gerar alguns erros, mas também não tenho razões para acreditar que elas sejam estatisticamente relevantes.

Os dados dos dez concursos relacionados acima, todos realizados nos últimos 4 anos, são bastante eloquentes:
1 - Em nenhum deles houve mais mulheres aprovadas que homens.
2 - Apenas no concurso do TJSP houve igualdade de aprovados. 1 caso entre os 10 que compõem a amostra
3 – Nas demais situações (9), em que houve desigualdade, ela foi bastante significativa. Nos concursos em que foi menor, o número de mulheres ficou entre 42 e 43% do total de candidatos aprovados (MPMG e MPSP 2014). Nos que a desigualdade foi maior, o percentual de mulheres aprovadas não superou 16%, no caso do TRF5 – 2012 e 23%, no 28º concurso do MPF. No primeiro caso, o número de homens aprovados é 5 vezes o número de mulheres. No segundo, supera o triplo.
Isso significa, na minha opinião, que há marcada desigualdade de gênero entre os aprovados para a Magistratura e o Ministério Público, passível de ser demonstrada estatisticamente. Acredito que, se essa pesquisa for repetida com uma amostra maior de concursos que a considerada, os resultados se repetirão.  

Isso é muito sério, considerando que, sem desdouro algum a outras carreiras, magistratura e MP são, em média, as funções mais cobiçadas entre os candidatos e as que, em nosso sistema constitucional, exercem maior parcela de poder. Os dados acima sugerem que as mulheres continuam sendo minoria entre os ingressantes nesses concursos, ou seja, entre aqueles que ocupam as funções de cúpula das carreiras jurídicas.

Como os dados são recentes e se referem a pessoas que ingressam, via de regra, com pouca idade nas carreiras, para se aposentar daqui há mais de 30 anos, a tendência é que a situação de desigualdade perdure por muitos anos no futuro.

Não é minha pretensão explicar a razão desses resultados, mas apenas chamar a atenção para uma realidade, no mínimo, preocupante, que deveria ser melhor estudada. Quero, entretanto, fazer uma breve análise, que reconheço ser especulativa, de algumas possíveis justificativas ou argumentos relacionados à situação:

1 – “Não se pode comparar o número de aprovadas com o de mulheres na sociedade, mas sim com o de estudantes de direito”: essa é uma ideia verdadeira, mas que, provavelmente, demonstraria uma desigualdade ainda maior do que a que eu aponto acima. Isso porque o número de mulheres nos cursos de direito me parece substancialmente superior ao de homens. Pelo menos é essa a minha impressão a partir da minha experiência docente. Assim, se não houvesse desigualdade, seria de se esperar que o número de aprovadas fosse superior à metade do número total de candidatos bem-sucedidos. A desigualdade real, portanto, deve ser maior que a análise acima realizada sugere.

2 – “Não se pode comparar o número de aprovadas com o de mulheres na sociedade, mas sim com o de candidatas aos concursos”: esse também é um argumento verdadeiro. Entretanto, toda a discussão relativa a cotas raciais em concursos públicos leva em conta a diferença entre os negros na sociedade e nos quadros das instituições, não considerando os que efetivamente se inscrevem em concursos públicos. Isso vale, inclusive, para a justificativa oficial da Presidência da República ao projeto de lei que se converteu na lei 12.990/14, constante da mensagem de encaminhamento do mesmo ao Congresso Nacional. Se essa análise tiver que ser feita – eu pessoalmente, acho que deveria – ela deve valer tanto para questões de gênero, quanto de raça.

3 – “As mulheres não querem ser juízas ou membros do MP”: esse é um argumento a la Eric Cartman, quando diz que judeus não podem ser piratas. Afirmar que as mulheres não querem exercer uma função é partir do estereótipo de mulher e utilizá-lo para justificar a desigualdade que ele acarreta. Em outras palavras, é confundir a consequência com a causa. Se as mulheres não estão se inscrevendo para esses concursos, é preciso investigar as condições sociais que estão levando a esse resultado, e não transformar isso em justificativa.

4 – “As carreiras jurídicas são machistas e não querem aprovar mulheres”: não posso falar por todos, mas posso garantir que, no MPF, isso não é verdade. Embora seja uma das instituições cuja distorção foi mais acentuada, a banca dos 3 concursos analisados foi composta por 4 mulheres, das quais em conheço bem 3. Todas não apenas são muito competentes, como são conscientes dos problemas de gênero e militam ativamente na questão, dentro de suas atribuições. Não me parece que um eventual preconceito das bancas seja a causa desse resultado.

5 – “Precisamos de cotas para mulheres em concursos”: não me parece que cotas sejam a solução, nem para negros, nem para mulheres. Tenho dúvidas, primeiramente, sobre até que ponto é possível fazer com que as instituições reflitam o perfil da sociedade. Também tenho dúvidas de que o cidadão, que é atendido pelos servidores públicos, deve perder o direito de que o recrutamento destes se faça apenas por critérios que priorizem o bom desempenho do serviço. Na minha visão, o que seria melhor é buscar entender as causas desse fenômeno, para depois trabalhar em uma política pública. Essas causas, me parece, estão mais presentes na sociedade do que nos concursos.

6 – “Há uma distorção nos estímulos racionais para ingressar em determinados cargos”: é muito raro que um candidato passe para juiz ou MP diretamente depois da faculdade. Outros concursos são mais acessíveis, exigem menos requisitos, são menos concorridos, cobram menos matérias etc. Com isso, os dados disponíveis demonstram que a maioria dos aprovados para essas funções já ocupava outro cargo anteriormente. Acontece que um bom número desses outros cargos, hoje em dia, paga remuneração não muito inferior à que o sujeito poderia ganhar como juiz ou membro do MP. Eventualmente, algumas carreiras pagam até mais. Considerando que ser juiz ou MP implica o exercício de funções de maior visibilidade social, o que acarreta maior responsabilidade, há poucos estímulos racionais para subir o degrau (excluo, aqui, estímulos emocionais, como vocação, desejo de pertencer a uma carreira etc.). Para as mulheres, o fato de ter de passar mais anos estudando, para ganhar pouco a mais e, eventualmente, correr o risco de expor a família a uma situação de ameaça ou de desconforto social pode parecer, racionalmente, um mau negócio. Afinal, pode até haver um ou outro caso de um advogado público ameaçado em razão das funções, mas acho que podemos concordar que essa possibilidade é consideravelmente mais remota que a dessa ocorrência com um juiz ou MP.

É certo que estou, aqui, especulando, mas eu entenderia se alguém me dissesse isso. Socialmente, sabemos que as mulheres são muito mais cobradas pelo bem-estar familiar que os homens. Não me parece absurdo que essa cobrança social pese também na escolha da carreira. Se uma mulher não se sentir especialmente vocacionada a uma carreira específica, não me parece irrazoável que ela pretenda se estabilizar mais rapidamente, além de poupar a si e aos seus de um risco. Não que todas as mulheres queiram isso, entendam bem. Mas eu acho que isso pode ser um fator responsável pela distorção estatística verificada.

Em síntese, meus caros, quero encerrar essa longa postagem com uma conclusão bem simples: nossa sociedade ainda está em dívida com as mulheres. Ainda temos condições sociais, não inteiramente identificadas, que afastam as mulheres das principais posições de poder no âmbito dos concursos públicos. Acho que essas causas são muito profundas e não serão resolvidas apenas no âmbito dos próprios concursos. O importante é a conscientização acerca do fato, para que possamos pensar, no futuro, na sua solução. Nossa igualdade ainda é muito mais de papel do que de fato. E isso é muito triste.


P.S.: Uma curiosidade final. O MPSP adota a louvável iniciativa de publicar um relatório com estatísticas do concurso. Nele constam o número de inscritos, de aprovados em cada uma das etapas, de desistentes, ausentes, inscrições indeferidas e o nome de todos os aprovados, com as faculdades em que se graduaram. Muitos detalhes, não é? Não consta, nesse relatório, qualquer referência ao número de mulheres candidatas, desistentes ou aprovadas, informação que, certamente, está no sistema de inscrições. Irrelevante?