Eu gostaria de iniciar o mês de março de 2016 escrevendo um texto não sobre como passar em concursos, ou técnicas para passar em concursos, mas sobre um assunto que nunca abordei: quem passa em concursos. Ou melhor, a desigualdade das pessoas que passam em concursos.
É sabido que, desde que as carreiras públicas jurídicas se
tornaram financeiramente atraentes e, com isso, altamente concorridas, estudar
para concursos é um empreendimento caro. Logo, há uma desigualdade financeira
marcante entre os aprovados nos concursos de nível mais alto. Ou o candidato
vem de uma família abastada, que pode pagar pelo seu tempo de estudo e, além
disso, pelos insumos necessários para tanto – livros, cursos etc. – ou ele precisa
passar em um concurso de menor nível primeiro, para depois se arriscar em
concursos entendidos como de ponta.
Em segundo lugar, há o problema racial. É certo que mais
brancos que negros se tornam servidores públicos. Esse vem sendo amplamente
discutido no país, especialmente após a Lei 12.990/14, que reservou aos
candidatos autodeclarados pretos e pardos, 20% das vagas em cargos públicos.
Recentemente, publiquei um artigo sustentando que essa lei é inconstitucional.
Vou disponibilizá-lo no meu perfil do academia.edu para quem quiser ler. O
argumento é muito complexo e não é o meu tema de hoje.
O que pretendo tratar aqui é da desigualdade de gênero em
concursos públicos para a Magistratura e o Ministério Público. Minha hipótese é
simples. Ao conviver, já por dez anos, com magistrados e membros do Ministério
Público, me parece que o número de mulheres aprovadas nesses concursos é muito
baixo. Se a população brasileira é composta de aproximadamente 51% de mulheres
e 49% de homens, e se nós vivemos em uma sociedade na qual existe igualdade de
gênero, seria de se esperar que o número de aprovados, em qualquer concurso,
girasse em torno de metade homens e metade mulheres.
Com essa hipótese em mente, levantei informações de 10
concursos, realizados recentemente, para testar sua validade. Vamos aos dados:
Concurso
|
Homens
|
Mulheres
|
MPF Procurador da República – 27º
|
54
|
17
|
MPF – Procurador da República – 26º
|
62
|
27
|
MPF – Procurador da República – 25º
|
53
|
18
|
Magistratura Estadual – SP – 185º concurso - 2015
|
41
|
41
|
Tribunal Regional Federal da 4ª Região – 2015
|
9
|
5
|
Tribunal Regional Federal da 4ª Região – 2013
|
18
|
10
|
Tribunal Regional Federal da 1ª Região – 2014
|
39
|
17
|
Tribunal Regional Federal da 5ª Região - 2014
|
14
|
8
|
Tribunal Regional Federal da 5ª Região – 2012
|
15
|
3
|
MP Minas Gerais – 2013
|
19
|
14
|
MP São Paulo – 2014
|
46
|
36
|
MP São Paulo – 2013
|
46
|
34
|
Algumas considerações metodológicas: 1 – não é muito fácil
encontrar os dados online. Os Tribunais Regionais Federais da 3ª e 4ª Regiões
não mantêm na internet a lista de aprovados em seus concursos já encerrados,
apenas as provas anteriores. Precisei de alguma ajuda do Google para buscar os
dados. 2 – Há alguns poucos nomes em relação aos quais tive que supor o gênero
do candidato, mas não acredito que isso tenha impacto estatístico sobre o
resultado. 3 – Fiz a contagem dos nomes manualmente, o que pode, evidentemente,
gerar alguns erros, mas também não tenho razões para acreditar que elas sejam
estatisticamente relevantes.
Os dados dos dez concursos relacionados acima, todos
realizados nos últimos 4 anos, são bastante eloquentes:
1 - Em nenhum deles houve mais mulheres aprovadas que
homens.
2 - Apenas no concurso do TJSP houve igualdade de aprovados.
1 caso entre os 10 que compõem a amostra
3 – Nas demais situações (9), em que houve desigualdade, ela
foi bastante significativa. Nos concursos em que foi menor, o número de
mulheres ficou entre 42 e 43% do total de candidatos aprovados (MPMG e MPSP
2014). Nos que a desigualdade foi maior, o percentual de mulheres aprovadas não
superou 16%, no caso do TRF5 – 2012 e 23%, no 28º concurso do MPF. No primeiro
caso, o número de homens aprovados é 5 vezes o número de mulheres. No segundo,
supera o triplo.
Isso significa, na minha opinião, que há marcada
desigualdade de gênero entre os aprovados para a Magistratura e o Ministério
Público, passível de ser demonstrada estatisticamente. Acredito que, se essa
pesquisa for repetida com uma amostra maior de concursos que a considerada, os
resultados se repetirão.
Isso é muito sério, considerando que, sem desdouro algum a
outras carreiras, magistratura e MP são, em média, as funções mais cobiçadas
entre os candidatos e as que, em nosso sistema constitucional, exercem maior
parcela de poder. Os dados acima sugerem que as mulheres continuam sendo
minoria entre os ingressantes nesses concursos, ou seja, entre aqueles que
ocupam as funções de cúpula das carreiras jurídicas.
Como os dados são recentes e se referem a pessoas que
ingressam, via de regra, com pouca idade nas carreiras, para se aposentar daqui
há mais de 30 anos, a tendência é que a situação de desigualdade perdure por
muitos anos no futuro.
Não é minha pretensão explicar a razão desses resultados,
mas apenas chamar a atenção para uma realidade, no mínimo, preocupante, que
deveria ser melhor estudada. Quero, entretanto, fazer uma breve análise, que
reconheço ser especulativa, de algumas possíveis justificativas ou argumentos
relacionados à situação:
1 – “Não se pode comparar o número de aprovadas com o de
mulheres na sociedade, mas sim com o de estudantes de direito”: essa é uma
ideia verdadeira, mas que, provavelmente, demonstraria uma desigualdade ainda
maior do que a que eu aponto acima. Isso porque o número de mulheres nos cursos
de direito me parece substancialmente superior ao de homens. Pelo menos é essa
a minha impressão a partir da minha experiência docente. Assim, se não houvesse
desigualdade, seria de se esperar que o número de aprovadas fosse superior à
metade do número total de candidatos bem-sucedidos. A desigualdade real,
portanto, deve ser maior que a análise acima realizada sugere.
2 – “Não se pode comparar o número de aprovadas com o de
mulheres na sociedade, mas sim com o de candidatas aos concursos”: esse também
é um argumento verdadeiro. Entretanto, toda a discussão relativa a cotas
raciais em concursos públicos leva em conta a diferença entre os negros na sociedade
e nos quadros das instituições, não considerando os que efetivamente se
inscrevem em concursos públicos. Isso vale, inclusive, para a justificativa oficial
da Presidência da República ao projeto de lei que se converteu na lei 12.990/14,
constante da mensagem de encaminhamento do mesmo ao Congresso Nacional. Se essa
análise tiver que ser feita – eu pessoalmente, acho que deveria – ela deve
valer tanto para questões de gênero, quanto de raça.
3 – “As mulheres não querem ser juízas ou membros do MP”:
esse é um argumento a la Eric Cartman, quando diz que judeus não podem ser
piratas. Afirmar que as mulheres não querem exercer uma função é partir do
estereótipo de mulher e utilizá-lo para justificar a desigualdade que ele
acarreta. Em outras palavras, é confundir a consequência com a causa. Se as
mulheres não estão se inscrevendo para esses concursos, é preciso investigar as
condições sociais que estão levando a esse resultado, e não transformar isso em
justificativa.
4 – “As carreiras jurídicas são machistas e não querem
aprovar mulheres”: não posso falar por todos, mas posso garantir que, no MPF,
isso não é verdade. Embora seja uma das instituições cuja distorção foi mais
acentuada, a banca dos 3 concursos analisados foi composta por 4 mulheres, das
quais em conheço bem 3. Todas não apenas são muito competentes, como são
conscientes dos problemas de gênero e militam ativamente na questão, dentro de
suas atribuições. Não me parece que um eventual preconceito das bancas seja a
causa desse resultado.
5 – “Precisamos de cotas para mulheres em concursos”: não me
parece que cotas sejam a solução, nem para negros, nem para mulheres. Tenho
dúvidas, primeiramente, sobre até que ponto é possível fazer com que as
instituições reflitam o perfil da sociedade. Também tenho dúvidas de que o
cidadão, que é atendido pelos servidores públicos, deve perder o direito de que
o recrutamento destes se faça apenas por critérios que priorizem o bom
desempenho do serviço. Na minha visão, o que seria melhor é buscar entender as
causas desse fenômeno, para depois trabalhar em uma política pública. Essas
causas, me parece, estão mais presentes na sociedade do que nos concursos.
6 – “Há uma distorção nos estímulos racionais para ingressar
em determinados cargos”: é muito raro que um candidato passe para juiz ou MP
diretamente depois da faculdade. Outros concursos são mais acessíveis, exigem
menos requisitos, são menos concorridos, cobram menos matérias etc. Com isso,
os dados disponíveis demonstram que a maioria dos aprovados para essas funções
já ocupava outro cargo anteriormente. Acontece que um bom número desses outros
cargos, hoje em dia, paga remuneração não muito inferior à que o sujeito
poderia ganhar como juiz ou membro do MP. Eventualmente, algumas carreiras
pagam até mais. Considerando que ser juiz ou MP implica o exercício de funções
de maior visibilidade social, o que acarreta maior responsabilidade, há poucos
estímulos racionais para subir o degrau (excluo, aqui, estímulos emocionais,
como vocação, desejo de pertencer a uma carreira etc.). Para as mulheres, o
fato de ter de passar mais anos estudando, para ganhar pouco a mais e,
eventualmente, correr o risco de expor a família a uma situação de ameaça ou de
desconforto social pode parecer, racionalmente, um mau negócio. Afinal, pode
até haver um ou outro caso de um advogado público ameaçado em razão das
funções, mas acho que podemos concordar que essa possibilidade é
consideravelmente mais remota que a dessa ocorrência com um juiz ou MP.
É certo que estou, aqui, especulando, mas eu entenderia se
alguém me dissesse isso. Socialmente, sabemos que as mulheres são muito mais
cobradas pelo bem-estar familiar que os homens. Não me parece absurdo que essa
cobrança social pese também na escolha da carreira. Se uma mulher não se sentir
especialmente vocacionada a uma carreira específica, não me parece irrazoável
que ela pretenda se estabilizar mais rapidamente, além de poupar a si e aos
seus de um risco. Não que todas as mulheres queiram isso, entendam bem. Mas eu
acho que isso pode ser um fator responsável pela distorção estatística
verificada.
Em síntese, meus caros, quero encerrar essa longa postagem
com uma conclusão bem simples: nossa sociedade ainda está em dívida com as
mulheres. Ainda temos condições sociais, não inteiramente identificadas, que
afastam as mulheres das principais posições de poder no âmbito dos concursos
públicos. Acho que essas causas são muito profundas e não serão resolvidas
apenas no âmbito dos próprios concursos. O importante é a conscientização
acerca do fato, para que possamos pensar, no futuro, na sua solução. Nossa
igualdade ainda é muito mais de papel do que de fato. E isso é muito triste.
P.S.: Uma curiosidade final. O MPSP adota a louvável
iniciativa de publicar um relatório com estatísticas do concurso. Nele constam
o número de inscritos, de aprovados em cada uma das etapas, de desistentes,
ausentes, inscrições indeferidas e o nome de todos os aprovados, com as
faculdades em que se graduaram. Muitos detalhes, não é? Não consta, nesse relatório,
qualquer referência ao número de mulheres candidatas, desistentes ou aprovadas,
informação que, certamente, está no sistema de inscrições. Irrelevante?