quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O Ministério Público e a palavra parquet

A boba rivalidade que recorrentemente se instala entre membros do Ministério Público e advogados faz com que se ouça, no Brasil, a afirmação de que a referência ao Ministério Público pela expressão francesa parquet, que é comum no jargão forense, teria caráter pejorativo em sua origem, referindo-se ao fato de que o membro do Ministério Público ficaria no piso da sala e o juiz, no alto. Parquet seria, nessa versão, uma referência ao design do piso. Mesmo no verbete brasileiro na wikipedia, é possível ler que “A designação “parquet” ao Ministério Público tem origem na França, onde os procuradores do rei ficavam sobre o assoalho da sala de audiências e não sobre o estrado ao lado do magistrado, como acontece atualmente”. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Parquet

Isso, entretanto, é falso. Na França, assim como na maioria dos países europeus, os membros do Ministério Público são designados por magistrados, distinguindo-se do juiz por se tratar de uma magistratura de pé (magistrature debout), isto é, não tolhida pela inércia, como o julgador (magistrats du siège). Essa expressão, magistrature debout, se origina dos antigos julgamentos franceses, nos quais o membro do Ministério Público se levantava para falar, enquanto o juiz permanecia sentado durante todo o evento, mas estar de pé ou assentado, nesse contexto, nada tem a ver com hierarquia, como parecem acreditar alguns. 

Além disso, a apreensão da palavra parquet pelo contexto jurídico não é uma referência ao estilo do piso no qual o membro do Ministério Público ficaria de pé. Esse uso é muito antigo, remontando ao francês arcaico medieval, provavelmente tendo como versão mais longa “parquet des Gens du Roi”, que se traduziria por escritório (ou ofício) do Rei. Também se encontra, em dicionários de francês, a palavra parquet, isoladamente, traduzida como “ensemble des magistrats d’une cour”, ou seja, o conjunto de magistrados de um tribunal. Isso decorre do fato de que, nos países europeus, os membros do Ministério Público são referidos como magistrados.

A palavra parquet se origina de parc, que significa local ou lugar. Isso porque, na Grand-Chambre de Paris e em várias outras cortes francesas, os membros do Ministério Público eram separados dos magistrats du siège, ocupando um parc, ou seja, um local fisicamente delimitado, que lhes era especificamente atribuído (PERROT, Roger. Institutions judiciaires. 13. ed. Paris: Montchestien, 2008). O fato de um estilo de decoração de piso ter recebido o mesmo nome (piso de parquet) foi associado, no imaginário jurídico brasileiro, ao fato de que o magistrado do Ministério Público fica de pé, para concluir equivocadamente que o piso tem a ver com o Ministério Público e, pior, que ser designado pelo nome do piso seria uma forma de menosprezar a função. 

Em realidade, o Ministério Público francês é conhecido como “Le Parquet” tanto no jargão forense quanto em sites oficiais e a expressão nada tem de pejorativa. Assim como na Itália, o recrutamento de juízes e membros do Ministério Público francês é único, diferenciando-se apenas a função dos aprovados, durante o exercício (The Legal profession in Europe, disponível em <https://e-justice.europa.eu/content_legal_professions-29-fr-en.do?member=1>). 

Quanto ao piso, a palavra parquet foi aplicada a esse estilo decorativo a partir da mesma origem, parc. É que a disposição da madeira para a criação do piso com esse design forma desenhos de espaços delimitados. Assim, o parquet piso e o parquet Ministério Público apenas compartilham a origem etimológica, parc, com o significado de lugar delimitado. Não foi um que derivou para o outro, como acreditam e propalam alguns juristas brasileiros. 

O equívoco, aliás, é exclusivamente brasileiro. Mesmo o básico dicionário Francês-Português da Porto Editora (Português de Portugal, portanto), traduz a palavra como “local reservado aos membros do Ministério fora das audiências” sem qualquer relação com piso (https://www.infopedia.pt/dicionarios/frances-portugues/parquet). 

Enfim, se a rivalidade entre carreiras jurídicas já é algo a ser repudiado, mais ainda quando ela serve para propalar o equívoco e a desinformação.

Atualização: depois que publiquei o post descobri que o meu colega Vladimir Aras, autor do Blog do Vlad, cuja leitura indico há tempos, escreveu, em 2013, texto sobre o mesmo assunto, que eu não conhecia, mas que chega às mesmas conclusões. Vale conferir: https://vladimiraras.blog/2013/12/31/o-parquet-e-o-chao-do-forum/.