sábado, 3 de setembro de 2016

A Caixa de Pandora

Em três edições do Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas (Editora Jupodivm, 2012, 2014, 2016) posicionei-me como um defensor das ações afirmativas no Ensino Superior como uma política pública interessante para coibir a distorção que vi e vivi quando fui usuário desse serviço público: a maioria absoluta de meus colegas era branca e compunha a classe média-alta ou alta do país. Eram recém-saídos dos melhores colégios de Minas Gerais e tinham sua educação pública e gratuita financiada pelos tributos que os desvalidos deste país são obrigados a recolher. É preciso muita ignorância ou muito cinismo para dizer que esse cenário não precisava ser mudado. Ele melhorou consideravelmente nos últimos anos, com a adoção das ações afirmativas, consagradas no julgamento da ADPF 186 e, posteriormente, na Lei 12.711/12.

Havia, entretanto, um porém, que parecia pequeno, à época: definir quem é negro. Algumas universidades, como a UnB e a UFPR, embora insistissem, teoricamente, que o critério de enquadramento racial era a autoidentificação, criaram comissões, com denominações eufemisadas ao gosto brasileiro, para avaliar as declarações de quem se dizia negro, pretendente ao benefício. Essa conduta foi validada pelo supremo Tribunal Federal, que fugiu da questão na análise da ADPF 186, permitindo, em fundamentação superficial, que qualquer tipo de avaliação fosse feita. No campo das Universidades, as comissões só acabaram após instrução normativa do Ministério da Educação, que se seguiu à Lei anteriormente mencionada.

Eu reconheço, com muita clareza, as boas intenções que estavam por trás disso, a tentativa de evitar a fraude e o descrédito da política em um país miscigenado e pouco respeitoso à legalidade. Mas hoje, com a vantagem de olhar para o passado, vejo que isso destrancou uma caixa de pandora cujos resultados tremendamente nefastos começamos a viver.

Criou-se a cultura de que raça é algo avaliável externamente. Não é um constructo decorrente da vivência pessoal e social, mas uma avaliação “fenotípica”. Ninguém nunca diz qual fenótipo seria o necessário para que alguém fosse considerado negro. Diz-se apenas que deve ser avaliado o fenótipo do candidato, desconsiderando sua declaração se a comissão julgar que o declarante não tem o fenótipo – não definido anteriormente – adequado aos parâmetros – não publicizados – da comissão.
Tudo parecia bem, entretanto, após a Lei 12.711/12, que incorporou a política racial em um corte social, diminuindo, assim, o peso da raça. Como a maioria dos pobres, no Brasil, é negra, o corte social serviria, com alguma probabilidade, para evitar maiores problemas.

Mas aí veio a Lei 12.990/14, votada às pressas em ano eleitoral, e previu o critério puramente racial como vantagem competitiva para concorrer a cargo público e, apesar de afirmar que o critério de verificação seria a autodeclaração, autorizou que esta fosse desconsiderada caso fosse “falsa”. Observe: a lei não diz o que é uma declaração verdadeira, mas permite que ela seja rejeitada se for falsa. Trata-se, mais uma vez, de uma construção que ressalta os piores defeitos do direito brasileiro, de sua construção apressada e irrefletida.

A norma vem dando diversos frutos nefastos:

Primeiro:  em uma ação que ganhou publicidade nacional, o Ministério Público Federal ajuizou ação para, com base em fotografias de documentos e de redes sociais, obter ordem judicial para obstar a matrícula de aprovados em concursos por terem falsamente se declarado negros. A liminar foi deferida.

Segundo: o Ministério do Planejamento, respondendo às perplexidades de diversos órgãos da Administração Pública Federal, editou a Orientação Normativa, em agosto de 2016, prevendo a criação de comissões, em todos os concursos, para avaliar, presencialmente e de acordo com o fenótipo, quem é negro e quem não é. Veja bem: nem a norma, nem o edital, dizem quem é negro. Dizem apenas que deve ser avaliado o fenótipo e recusado quem não é.

Terceiro: o Instituto Federal do Pará, na tentativa de obter maior clareza científica sobre quem é negro e quem não é, criou a tabela abaixo, cuja imagem recebi e disponibilizo, a qual dispensa maiores comentários. É preciso passar em uma prova de negritude, com nota mínima e tudo, para ser negro no Pará. Depois da repercussão, esse anexo foi suprimido, mas, como não existe critério para saber quem é negro, nada impede que a banca o utilize. É só não publicar os resultados e afirmar, genérica e laconicamente, que a banca não considerou o candidato negro. Assim, retirar o anexo do edital não resolve o problema: nós teremos que desenvolver critérios cada vez mais “científicos” para dizer quem é negro e quem não é, para fins de cotas.

David Landes, em seu livro sobre a inquisição, após descrever os abusos e excessos do processo inquisitorial, escreve uma frase triste e marcante, da qual me lembrei assim que recebi o documento do IFPA e concluí que não se tratava de uma falsificação: “Em tudo isto, os espanhóis e portugueses rebaixaram-se”. Ao ler que um órgão público federal considerou razoável publicar um documento no qual pretendia avaliar os dentes, os lábios, o nariz, a testa, os cabelos, a barba e a pele dos candidatos, só posso pensar no quanto estamos nos rebaixando. Em nome de evitar a fraude, de proteger os beneficiários da política – esse foi o argumento usado pelo Instituto em sua nota sobre a polêmica – estamos criando um sistema de classificação racial que nunca existiu no Brasil. E, pior, estamos fazendo isso, supostamente, em nome da proteção dos direitos dos destinatários da política.

Eu sei que toda comparação que se faz com o nazismo é chocante e sempre parece exagerada ou emocional. Mas estive recentemente no museu do holocausto de Washington e posto abaixo, ao lado do diagrama do IFPA, duas fotos de um livro que comprei. Eu sinto muito, mas não consigo ver que a comparação seja exagerada. Ainda que os nazistas o fizessem para matar e nós o façamos com a justificativa de proteger, a metodologia me parece, senão idêntica, análoga.  


Peço desculpas se pareço tão decepcionado e se não consegui formular este texto com a leveza que procuro imprimir aos meus escritos. É triste ver políticas que têm potencial para corrigir distorções tão sérias do país serem conduzidas de modo tão irrefletido e distorcido, mesmo que, reitero, com boas intenções. É dessas imagino, que o inferno deve estar cheio.

Abaixo estão a imagem da tabela desenvolvida pelo IFPA, algumas fotos da metodologia "científica" nazista de classificação racial (algumas estão disponíveis neste link, e outras são do Museu Holocausto de Washington). Segue também link para um artigo meu, publicado na Revista de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas, no qual discuto o tema com mais rigor










3 comentários:

  1. http://www.cnmp.mp.br/portal_2015/todas-as-noticias/9641-entra-em-vigor-recomendacao-sobre-atuacao-do-mp-contra-fraudes-em-sistemas-de-cotas
    :/

    ResponderExcluir
  2. Parabéns, procurador. Isso reforça a importância de fazer um escrutínio rigoroso de políticas públicas antes de implementá-las. Os nomes das categorias de "raça" vêm geralmente de nomes de cores, coisas com ao menos certo grau de objetividade. A ideia de raças já é, por esse e outros motivos, incompatível com o critério da autodeclaração. Os favoráveis às cotas raciais irão atacar a autodeclaração de algumas pessoas, e então um tribunal racial de portas fechadas é montado para silenciar a celeuma. Como você indicou, os critérios da tabela do IFPA fizeram escândalo por escancararem à luz do dia o que já está acontecendo a portas fechadas. É preciso ser firme no universalismo da lei, no princípio da igualdade perante a lei, e dar um fim a essa política. Substituí-la por critérios menos escabrosos, no mínimo.

    ResponderExcluir
  3. Sem ter o que dizer, notadamente, de algumas ações adotadas no Pará (ou na região Norte como um todo). Exemplo dos descalabros ocorridos trata-se de bonificação de 10% aos alunos que estudaram por toda a vida na região Norte, atribuída à nota no Enem. Assim, a bonificação não é atribuída a alunos de escolas públicas, mas a TODOS os alunos que estudaram na região. Justificativa: possibilitar que as vagas nas faculdades locais fossem preenchidas por pessoas que viveram boa parte de suas vidas (ou a vida inteira) em tal região. Resultado: a nota de corte para entrar no curso de Medicina na UFPA é maior do que a nota para ingresso na UnB. Isso se dá por que àqueles que sempre estudaram no Pará possuem um acréscimo em sua pontuação (Enem) de 10%, dificultando assim o acesso de pessoas de outros estados ao ensino público de nível superior. Não entro no mérito da qualidade do ensino entre a UnB e a UFPA, mas ingresso na questão quantitativa, uma vez que é inquestionável a diferença entre a concorrência (repito, em números) para ambas faculdades. Eis que pergunto: é legítimo estabelecer um mecanismo de ação no sentido de facilitar o acesso de uns a determinado direito, em detrimento de outros que se encontram em igualdade de condições? Pois sejamos honestos: atribuir 10% a mais na pontuação dos candidatos locais não favorecerá os que mais precisam, mas os candidatos de escolas particulares que possuem exatamente o mesmo nível de conteúdo dos candidatos de qualquer região do país. Atualmente, a imensa maioria dos colégios particulares fazem uso de instrumentos de ensino à distância, que permitem o uso do mesmo material por colégios situados nos mais variados lugares do país. E a questão que realmente segrega, já sabemos qual é: não se trata de uma diferença regional, mas de uma diferença social (e não é esse o caso) ou de uma diferença econômica. Basta verificar quantos candidatos ingressantes no curso de Medicina da UFPA são oriundos de escolas públicas. Poucos ou nenhum.
    Peço, de antemão, desculpas por fugir um pouco da temática aqui abordada, mas me mudarei para Belém em breve e, como moro na Bahia, meu filho tentará ingressar no ensino público no Pará, já sabendo que precisará ser 10% melhor que os melhores candidatos à vaga de Medicina. Isso é justo? O fim é, de fato, legítimo? Será que estamos falando de estados pertencentes ao mesmo país ou, como diria um professor, isso é algo que está acontecendo na "Argentina"?
    Concordo com o colega Eli Vieira no sentido de que é IMPRESCINDÍVEL um estudo mais rigoroso das políticas públicas (notadamente das ações afirmativas) antes de implementá-las, até para que o direito de uns não afete, sobremaneira, o direito de outros. Afinal sabe-se, desde os tempos de nossos bisavós, que o direito de uns começa onde termina o direito de outros, e reveste-se de notória injustiça a ideia de "vestir um santo desvestindo outro santo".
    Ademais, parabéns ao Dr. Edilson pelo excelente blog! Sigamos acompanhando novas postagens.

    ResponderExcluir