quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A bíblia dos três anos de atividade jurídica: texto atualizado em outubro/2014

Não paro de receber dúvidas por e-mail sobre a questão dos três anos de atividade jurídica. Acho que virei algum tipo de guru online (lembram do Walter Mercado, ligue djá!) sobre esse assunto. Então vou tentar fazer um post definitivo, que sane todas as 71 dúvidas selecionadas que recebi (são mais de 71 no total). Para começar, precisamos estabelecer algumas premissas:

Primeira premissa: tudo o que eu disser que vale ou não vale não significa que você está condenado a ser reprovado. Significa que há chance de questionamento e, se possível, você deve fazer algo para evitar isso. A palavra de ordem aqui é risco. O risco pode ser maior ou menor. Se não tiver jeito, paciência. Toque a vida e, caso seja recusado, questione judicialmente. Muitas pessoas conseguiram e a jurisprudência tem sido razoavelmente condescendente com os candidatos em situações limite. 
Apesar disso não ser ciência exata, o pessoal exagera. Encontrei um artigo de fevereiro de 2013 no COJUR sobre o tema, no qual o autor se utiliza da Resolução 11/06 do CNJ, a qual o próprio CNJ considera revogada desde 2009 (http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/resolucoespresidencia/12126-resolu-no-11-de-31-de-janeiro-de-2006). 

Segunda premissa: os critérios utilizados pelos concursos variam muito. Alguns são mais rigorosos, outros mais brandos. O TJSP, por exemplo, aceita quase tudo. O MPF costuma ser mais resistente. É preciso ter consciência de que duas pessoas em situação idêntica podem ter resultados diferentes em concursos diferentes.

Terceira premissa: se você não tem três anos de colação de grau do curso de Direito, então você não tem três anos de efetivo exercício. Ponto final. Em hipótese alguma. Esse requisito é inafastável. Tudo o que for comprovado tem que ser após a colação de grau. Além disso, não adianta fazer mestrado, doutorado, advogar e ser conciliador judicial, tudo ao mesmo tempo e achar que pode completar três anos em um. Os três anos se completam na data do aniversário de sua colação de grau. Então, se colou em 31/05/2010, completará 3 anos em 31/05/2013 e não, por exemplo, em 31/12/2012, como pensam algumas pessoas (ano 2010, ano 2011, ano 2012).

Uma leitora informa que uma determinada escola da magistratura estaria oferecendo um curso preparatório que incluiria 192 horas de prática de conciliação, e informando que isso seria suficiente para obter os três anos de prática jurídica em apenas um ano. Essa informação é falsa. Não acreditem nesse tipo de promessa.

Estabelecidas essas premissas, vamos aos casos. 

A resolução que regulamenta os três anos para concursos da magistratura é a 75 doCNJ. No Ministério Público, é a Resolução 40/09, do CNMP. A leitura das resoluções é muito informativa e recomendada para quem tem dúvidas.

Advocacia: segundo o CNJ, é preciso praticar “5 (cinco) atos privativos de advogado (Lei nº 8.906, 4 de julho de 1994, art. 1º) em causas ou questões distintas”. Ou seja, é preciso tocar 5 processos, fazendo neles alguma petição relevante (apensos que tenham número diferente, como é o caso de impugnação ao valor da causa, são processos diferentes). Existe dúvida sobre a elaboração de dois atos relevantes diferentes no mesmo processo. Pela literalidade da resolução, isso seria um processo só, então contaria só uma vez. Quanto mais você se aproximar dos termos da resolução, menor o seu risco. 

Acredito também que processos do juizado especial podem ser contados, mesmo em causas cuja atuação do advogado não seja obrigatória (menos de 20 salários). Nunca vi alguém ter problemas em razão disso. Não há necessidade de que o efetivo exercício ocorra em anos consecutivos, ou mesmo nos últimos três anos.

Um problema é quem trabalha em escritórios e não assina as petições que faz. O ideal seria negociar com o chefe para assinar pelo menos as 5 anuais. Se isso não for possível, dá para tentar apresentar um contrato de trabalho, a carteira assinada como advogado ou as cópias dos holerites de pagamento, mas aí a coisa se complica muito. Também acho possível apresentar, a título de complementação, se necessário, uma certidão do dono do escritório. Mas tudo isso são escoras. A exigência é de elaboração das 5 petições em 5 casos diferentes. Qualquer petição mais substancial (inicial, recursos, contestação, participação em audiência como advogado de uma das partes, sustentação oral em tribunal com seu nome constando no acórdão) pode ser contada. Não precisa ser apenas a inicial e pode ser jurisdição contenciosa ou voluntária. Só não vale petição de juntada, desarquivamento, substabelecimento e essas bobeiras. Também não adianta só ter o nome no substabelecimento. É preciso subscrever a petição. Desde que você assine, é irrelevante quantos advogados assinaram a petição com você. 

Como, em regra, no nosso sistema jurídico, os processos não duram apenas um ano, é possível dar uma manipulada nisso. Por exemplo, se um processo começou em 2010, mas você praticou um ato em 2012, pode contá-lo em 2012 e não em 2010, se isso for melhor para você. O importante é que, ao final, você tenha 5 atos em 5 casos diferentes em cada ano. Seria possível, em tese, contar atos diferentes, praticados no mesmo processo, mas em anos diferentes, já que a Resolução não exige que os processos de um ano sejam diferentes dos do outro. Mas aí já é um risco a mais.

É irrelevante, para fins de contagem do tempo, a prática de mais de 5 atos por ano. Isso não muda nada a contagem. Praticar 15 atos em um ano não transforma um ano em três anos. Contudo, se você tiver atuado em mais de 5 casos, apresente tudo o que fez ou uma parte considerável. Acho importante, para quem de fato advoga, mostrar que exerce a atividade e não apenas cumpre a exigência.

Outra questão: se você colou grau em janeiro de 2011, fez 5 petições em 2011, 5 em 2012 e 5 em 2013, seus três anos só se completarão em janeiro de 2014, no aniversário de sua colação de grau (terceira premissa). Não é possível fazer as cinco petições de 2013 em janeiro e pretender contar o ano de 2013 inteiro antecipadamente.

Modo de contagem do prazo: ninguém sabe muito bem. A princípio, o STF disse, em obter dictum, que era preciso se atentar para o “peculiar exercício forense”, sem nunca ter especificado muito bem o que é isso. Também há decisão no sentido de que o candidato não pode ser prejudicado pela demora na expedição da carteira da OAB. O problema é que essas decisões são muito casuísticas no STF e é difícil estendê-las para outros casos. Essa questão do peculiar exercício forense, por exemplo, já foi negada a várias pessoas que procuraram invocá-la. 

O MPF, no regulamento do 27º Concurso para Procurador da República, art. 45, trouxe uma disposição destinada a regular o modo de contagem desse prazo, da seguinte forma: 

§ 10 – O exercício da advocacia, como atividade jurídica, terá como termo inicial a data constante no protocolo judicial ou a data do documento, quando se tratar de ato extrajudicial, podendo, em relação ao primeiro e ao último ano do exercício da advocacia, o período ser contado proporcionalmente (peça/mês), tendo em vista que a contagem se dará dentro do ano civil”. 

O que o MPF quer dizer é que, se sua primeira petição é de abril de 2010, você computa apenas 9 meses de atividade em 2010. Se a última petição é de junho de 2013, computa apenas 6 meses em 2013. Pessoalmente, eu acho isso certo, pois equipara a contagem da advocacia à de quem é servidor público, que também só vai começar a contar da data da posse (quem toma posse em agosto só conta efetivo exercício a partir de agosto). Mas tenho certeza de que isso vai dar polêmica, caso algum aprovado caia nessa situação. De todo modo, é uma orientação para quem ainda está começando. Procure assinar sua primeira petição assim que possível. Não confie em contar desde a data em que a carteira da OAB foi expedida.

Exemplo: Ainda que não se use a contagem do MPF, o certo é que, para contar três anos de advocacia em 1º de junho de 2013, você precisa: 1) ter colado grau até 30 de maio de 2010; 2) ter praticado 5 atos em 2010, com os quais você garantirá o período de junho de 2010 até o final do ano; 3) 5 atos em 2011, para garantir o ano de 2011; 4) 5 em 2012, para computar o ano de 2012; 5) até aí, você só tem 2 anos e meio de atividade jurídica. Então, também precisará de  5 atos em 2013, para computar também o ano de 2013. Não existe fracionamento de número de petições para ano parcialmente exercido (por exemplo, fazer apenas 1 petição para contar 1 mês). 

Acho muito perigoso tentar fazer o que uma leitora perguntou: começar a atuar em junho de 2011, fazer duas petições, depois fazer mais 3 no primeiro semestre de 2012 e contar um ano de junho de 2011 a junho de 2012. O mais provável é que isso não seja aceito. Se você não fizer cinco petições em um ano, perdeu o ano. Aquele período não servirá para nada.  

Ano parcial: não há problema em contar uma parte de um ano. Exemplo: alguém fez as cinco petições e 2010, mas cancelou a OAB em 1º de outubro por ter passado em concurso incompatível, esses 9 meses de atividade jurídica serão contados. 

Modo de comprovação: é preciso juntar cópia das petições assinadas e protocolizadas. Não confie em juntar apenas procuração ou certidão da vara ou qualquer outro documento. Alguns editais aceitam a certidão da vara, mas ela deve fazer menção específica ao ato praticado e, dependendo da vara, vai dar algum trabalho conseguir isso.

Só por desencargo: é óbvio que, para assinar a petição, você tem que ter procuração ou substabelecimento para atuar em nome daquela pessoa. Nem pense em apenas colocar seu nome lá, junto com o advogado da parte, sem ser advogado constituído nos autos. Também não custa lembrar que outra pessoa assinar para você é crime e você pode vir a ter problemas sérios com isso. Eu já vi juiz oficiar ao Ministério Público (no caso, para mim) para apurar a diferença gritante entre as assinaturas do mesmo advogado no processo. Então, cuidado. Processo judicial não é lista de chamada da faculdade. 

Comprovação de atos no processo eletrônico: o processo eletrônico traz algumas complicações a mais para a comprovação de atividade jurídica, considerando que as petições não são assinadas, nem protocolizadas da forma tradicional. Pior ainda, como cada tribunal tem o seu sistema, é difícil estabelecer uma regra geral para comprovação desses atos. Eu sugeriria fazer o seguinte: coloque o seu nome e a sua qualificação como advogado na petição, mesmo que ela vá ser efetivamente enviada com a assinatura digital de outro advogado que assina junto com você. É óbvio que como o processo é eletrônico, você não precisa assinar a petição fisicamente e escanear a sua assinatura. Basta que seu nome esteja digitado na petição. Assegure-se de que você está cadastrado no processo, de modo a aparecer o seu nome na página em que são exibidos os nomes das partes e dos advogados. Guarde uma cópia da petição e essa tela impressa. Esse é o mínimo que você pode fazer. Como o processo eletrônico é novo, o mais provável é que os tribunais tenham bom senso para avaliar essa comprovação. Se você tiver oportunidade e quiser reduzir os riscos, procure enviar pelo menos 5 petições por ano utilizando a sua própria senha ou assinatura digital. Há alguns tribunais, como o TRF 3, que enviam um e-mail comunicando a aceitação da petição. Se esse for o caso do tribunal no qual você atua, é interessante guardar esse e-mail.

Finalmente, se você ainda estiver inseguro, é sempre possível pedir uma certidão na secretaria da vara de que seu nome consta como advogado no processo e na petição respectiva. Mas, no país da burocracia, a facilidade para conseguir esse documento também vai variar muito.

Advocacia extrajudicial: não há problemas com a atividade de advogado no âmbito extrajudicial. Emitir pareceres, visar contratos sociais, estatutos de associações, divórcios e separações em cartório, tudo isso é atividade jurídica. O mesmo vale para a consultoria em empresa privada. Junte cópia dos atos praticados, devidamente assinados. Se você não assina atos privativos de advogado nessa atividade, a comprovação fica um pouco mais complicada. O ideal seria que sua carteira de trabalho fosse assinada como advogado ou, em caso de prestação de serviços, que houvesse contrato nesse sentido.  

Pós-graduação: A resolução 75/09 do CNJ, reitero, revogou a resolução 11/06, de modo que não há que se falar em recorrer a esta para sustentar um conceito mais amplo de atividade jurídica. Logo, aqui temos uma cisão: o MP aceita atividades de pós-graduação como efetivo exercício e a magistratura não. Nem mesmo o mestrado e doutorado! Para o MP, um ano para pós lato sensu, dois para mestrado e três para doutorado. O recente edital do 27º concurso do MPF, por exemplo, aceita as atividades de pós-graduação normalmente. Se a pós exigir monografia, ela deve ser entregue para poder contar. 

Na magistratura, por outro lado, apenas os cursos de pós-graduação iniciados antes de 12 de maio de 2009 podem ser computados como efetivo exercício, em virtude de uma regra de transição que consta do art. 90 da Resolução 75/09 do CNJ.

Para os concursos que aceitam pós-graduação, não vejo óbice em fazer três pós lato sensu, em três anos consecutivos. Só acho que pega um pouco mal, para quem quer ser membro do MP, cumprir o requisito com três diplomas de pós do LFG ou do Damásio. Espere ser apertado na prova oral. Observe também que, se a pós foi iniciada antes da colação de grau, o período anterior à colação não conta.   

Cargo público privativo de bacharel em direito: conta a partir da data da posse. Não há como contar os meses do ano anteriores no mesmo ano. Quem toma posse em novembro, só terá 2 meses naquele ano.

Cargo público não privativo de bacharel em direito: Diz o CNJ: 

A comprovação do tempo de atividade jurídica relativamente a cargos, empregos ou funções não privativos de bacharel em Direito será realizada mediante certidão circunstanciada, expedida pelo órgão competente, indicando as respectivas atribuições e a prática reiterada de atos que exijam a utilização preponderante de conhecimento jurídico, cabendo à Comissão de Concurso, em decisão fundamentada, analisar a validade do documento”. 

Faça a certidão desse jeito, do modo mais minudente possível. Se fizer assim, descrevendo direitinho, acho que não tem problema. Há muitas pessoas perdendo o sono por confiar nessa certidão, mas acho que podem ficar tranquilos. Dificilmente a comissão vai questionar a certidão. Me parece que ela pode ser expedida pelo superior imediato. Não há necessidade de certidão do dirigente máximo do órgão ou do setor de RH. É o seu chefe imediato que pode certificar o que você efetivamente faz.

Não há um modelo dessa certidão, uma vez que ela depende da atividade que cada um exerce. O importante é que ela seja minuciosa e explique exatamente qual é a atividade desempenhada. 

Cargos cuja advocacia é vedada: esse para mim é o maior problema. A pessoa exerce um cargo público que não é privativo de bacharel em direito, que não tem atividade jurídica preponderante, mas que é proibido de advogar. A única solução segura que vejo é a de exercer a função de conciliador judicial, de modo cumulativo com a profissão. Se não for assim, infelizmente, o remédio será prestar concurso para um cargo intermediário, que não exija a comprovação de atividade jurídica, para depois tentar galgar a Magistratura e o MP. Há, é claro, exceções. Segundo me disseram alguns alunos, o TJSP aceita a atividade policial como de efetivo exercício e, para os advogados, conta só o tempo de OAB, nem exigindo petições. Mas isso é uma peculiaridade que pode mudar ao sabor das mudanças de banca. O melhor, para diminuir o risco, é não contar com isso. 

Atividade militar ou policial: acho que quem é militar ou policial, em exercício na atividade fim, pode ter problemas em utilizar essa atividade como atividade jurídica, salvo em algum concurso menos exigente. O ideal seria exercer a atividade de conciliador judicial cumulativamente (v. abaixo) ou atuar na área-meio, como em assessorias jurídicas, corregedoria, escolas de formação ou outras atividades processuais mais diretamente relacionadas com o conhecimento jurídico. Para quem é oficial, entretanto, pode haver uma outra solução: alguns estados têm exigido curso de Direito para o ingresso nessa carreira e, seguindo o raciocínio relativo ao cargo de oficial de justiça (v. abaixo), me pareceria possível argumentar que o oficialato exigiria conhecimento jurídico em qualquer circunstância. 

Atividade fiscal: essa é, talvez, a situação mais polêmica. O exercício de atividade fiscal (Receita Federal, Receita Estadual, Fiscal do Trabalho, Fiscal de Posturas, Fiscal Ambiental etc.)  exige conhecimentos jurídicos, mas a carreira não é privativa de bacharel em direito, o que denota que a atividade não é preponderantemente jurídica. É um caso análogo ao dos policiais. Assim, se o candidato não desempenhar uma atividade que demande mais precipuamente o conhecimento jurídico, como o julgamento de recursos etc, acredito que possa haver problemas em computar a atividade fiscal como atividade jurídica. Apesar disso, o horizonte não é ruim. O CNJ, no julgamento do pedido de providências 1438 entendeu que a atividade fiscal é atividade jurídica para fins de concurso da Magistratura (http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/3939:atividade-de-auditor-fiscal-vale-como-tempo-de-atividade-jurca. O CNMP, também decidindo casos concretos (Processo n° 0.00.000.000333/2010-19 e Processo nº 0.00.000.000334/2010-63) entendeu que a atividade de Fiscal Federal e Auditor do Tribunal de Contas são preponderantemente jurídicas. Só é preciso observar que esses entendimentos decorrem de decisões em casos concretos, mas  mesmo que possa haver problemas no âmbito administrativo, acredito que, hoje, os fiscais têm bons precedentes para levar aos Conselhos Nacionais ou ao Judiciário. 

Oficial de justiça: em alguns estados da Federação, o cargo de oficial de justiça é privativo de bacharel em direito. Em outros, não é. Há precedente do STF no sentido de que, por isonomia, o cargo de oficial de justiça deve ser considerado como efetivo exercício de atividade jurídica, mesmo que a lei daquele estado específico não exija tal requisito. 

Conciliador judicial: é a possibilidade mais tranquila e menos questionável para quem tem óbices ao exercício de alguma outra atividade, como é o caso de quem ocupa cargos não privativos de bacharel. O CNJ a caracteriza como “o exercício da função de conciliador junto a tribunais judiciais, juizados especiais, varas especiais, anexos de juizados especiais ou de varas judiciais, no mínimo por 16 (dezesseis) horas mensais e durante 1 (um) ano”. A única dúvida que existe é o significado desse “durante um ano”. Poderia ele servir para vedar o cômputo de período inferior a um ano, como alguns meses, ou superior a um ano, como cumprir os três anos sendo conciliador? Me parece que a resposta é negativa a ambas as perguntas. A locução “durante um ano” me parece apenas esclarecer que, para contar um ano, é preciso exercer o ano todo, não bastando, por exemplo, alguns meses por ano. Mas se a pessoa exerce alguns meses e deseja contar aqueles meses que exerceu, não vejo problema. Do mesmo modo, não acho que essa locução tenha o condão de obstar que a pessoa seja conciliadora por mais de um ano. Reconheço, entretanto, que a redação é mesmo ambígua.

UPDATE
Fui informado por um leitor que o Ministério Público Federal não aceitou o cômputo de menos de um ano na função de conciliador como efetivo exercício de atividade jurídica. Seria necessário ter pelo menos um ano completo. 

A vantagem é que não conheço estatuto de nenhuma categoria de servidores, mesmo militares, que proíba a atuação como conciliador, uma vez que se trata de atividade voluntária, que não exige inscrição na OAB.

Também recebi uma questão de uma pessoa que mora em uma cidade muito pequena e o número de conciliações não chega a 16 horas mensais. Eu acho que, nesse caso, o ideal seria pedir ao juiz para ficar à disposição por 16 horas, independentemente do número de conciliações efetivamente realizadas. Acredito que isso resolveria o problema, se o juiz concordar, é claro. 

Magistério: não há problema com o cômputo do magistério superior, desde que a disciplina ministrada seja jurídica. O magistério conta da mesma forma como se conta o cargo público, dia por dia, da data em que foi admitido até a data em que foi demitido. Lembro, mais uma vez, que mesmo que o magistério seja exercido concomitantemente com outra atividade jurídica, não é possível “dobrar o tempo” para fins de contagem. Será necessário aguardar os 3 anos.

Escrevente de cartório público ou privado: vale a regra do cargo não privativo. Se o chefe fizer a certidão descrevendo atividades desempenhadas pela pessoa que exijam conhecimento jurídico, a atividade poderá ser computada. 

“Colaborador” da defensoria pública, “Estágio prorrogado” do MPSP, “estágio de pós-graduação” do TJPR: vários órgãos públicos acharam jeitinhos para contratar pessoas formadas, na condição de estagiários ou de colaboradores voluntários, de modo a reforçar seus quadros. Embora me pareça que tudo isso seja de duvidosa legalidade, sob o prisma do direito administrativo, para fins de concurso público, se você tiver a certidão, dizendo que exerceu atividade junto a esse órgão, depois de formado e que a atividade envolve conhecimentos preponderantemente jurídicos, descrevendo quais são essas atividades, acho que não haverá problemas de comprovação. 

Atividade de orientação jurídica voluntária: essa foi uma das perguntas mais inusitadas que recebi: pessoa que presta orientação jurídica voluntária via internet. É uma questão duvidosa. Rigorosamente, é atividade jurídica, mas temo que, com o conservadorismo das bancas, haja grande possibilidade de que a pessoa tenha problemas. O mesmo vale para atividade de tutor em curso jurídico, já que ambas são situações em que o vínculo entre quem presta o serviço e a instituição (curso ou site) é precário. O ideal seria se garantir com as cinco petições e apresentar isso como reforço. 

Data para a comprovação dos três anos: até 27 de junho de 2012, tanto para a Magistratura quanto para o MP, a resposta era, no ato da inscrição definitiva, que se dá após a segunda etapa do concurso, antes da prova oral. Entretanto, em 27 de junho de 2012 a Resolução do CNMP foi alterada e, para o MP, passou-se a determinar que a verificação se dê apenas no ato da posse. Assim, é possível aos candidatos prestar o concurso para o MP desde a colação de grau. Caso o resultado final saia antes dos três anos, seria possível pedir o adiamento da posse, pelo prazo de validade do concurso, de modo a aguardar a complementação do tempo. Atenção apenas para o prazo de validade que, eventualmente, pode ser pequeno nesse tipo de certame. Só gostaria de observar que a jurisprudência era consolidada no sentido de que requisitos do cargo só se exigiam na data da posse. Quando MP e Magistratura passaram a exigi-los na inscrição definitiva, o STF se manifestou dizendo que MP e Magistratura são cargos especiais, que exigiriam maior segurança jurídica e, portanto, validando a exigência antes da posse. Agora o CNMP voltou atrás e o STF ainda não se manifestou. Resta saber se exigir esse requisito antes da posse é uma prerrogativa ou um dever do MP e dos tribunais. 

Em síntese, meus amigos, creio que, com uma leitura criteriosa, é possível enquadrar nas hipóteses que abordo aqui todas as situações de atividade jurídica para a Magistratura e o MP. Sei que algumas defensorias e advocacias públicas também têm passado a exigir esse requisito. Nesse caso, será preciso verificar cada edital, já que não há órgãos nacionais de uniformização de entendimentos. Aqui o céu das confusões é o limite. Há quem aceite atividade antes da colação de grau e tudo mais. Nosso guia, para essas hipóteses, deve ser usado com moderação. 

Agradeço muito a todas as pessoas que mandaram suas dúvidas sobre o assunto e me permitiram escrever uma postagem tão rica. Espero que, no futuro, todos possam dizer aos colegas “dúvidas sobre atividade jurídica? Lei a bíblia!”

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Uso de medicamentos na preparação para concursos

Mais um tema delicado. Eu sempre trato desse assunto com meus alunos no curso para a prova oral, mas, por esses tempos, conversando com amigos, me conscientizei de que essa situação tem interesse generalizado, infelizmente.

Não é nada nova a concepção de que você pode ter uma ajuda a mais para vencer uma competição. É o princípio do doping esportivo. Vou tomar alguma coisa que vai melhorar minhas chances contra o adversário. Se essa lógica vale para os esportes, por que não valeria para os concursos?

Até onde eu sei, a origem remota desse negócio está nas autoescolas (que agora escreve junto. Maldito Lula!). As pessoas ficavam muito nervosas para fazer o exame de direção e alguém descobriu que tomar alguns tipos de remédios para hipertensão permitia baixar a frequência cardíaca sem a redução de concentração específica dos calmantes. Bom, é só um dia, então, que mal poderia fazer?

Capítulo 2: Ritalina. Apesar de existir desde os anos 50 como tratamento para depressão e outros transtornos psicológicos, nos anos 70 ela foi muito utilizada para tratar o TDAH nos Estados Unidos, mas foi nos anos 90 que seu uso explodiu. Há uma grande polêmica sobre os motivos que levaram a esse aumento no uso da Ritalina, mas, ao longo dos anos 2000, foram ajuizadas diversas ações coletivas, em variados países do mundo, acusando a Novartis e outros laboratórios que fabricam o produto de ter sobre-publicizado a droga, com a condescendência da Associação Americana de Psiquiatria (artigo do advogado de defesa disponível em https://www.morganlewis.com/pubs/66662D49-4024-4421-A857C78B2351E7DB_Publication.pdf) . Há, portanto, polêmica acerca do uso do medicamento inclusive no seu uso prescrito que não é o de preparação para concursos.

Ocorre que, em algum momento, algum “gênio” pensou: “se isso faz as crianças se concentrarem, talvez eu possa tomar e me concentrar melhor no estudo para concurso”. Bem, cada um cuida da sua vida, eu não sou pai de ninguém, mas aqui vão algumas considerações que acho úteis sobre essa decisão:

1) Efeito placebo: ao contrário dos anabolizantes, você não pode medir o aumento das suas faculdades mentais com uma fita. Se você toma algo que supostamente vai fazê-lo se concentrar mais, é possível que você se concentre mais só por saber que tomou. Não há como eliminar o efeito placebo em uma situação dessa. Não existe um grupo controle que você possa comparar. Se você acredita que esse negócio funciona, é provável que ele funcione porque você acreditou. A mente é uma coisa misteriosa, como diria Sheldon Cooper, então não há garantia absolutamente nenhuma de que você está efetivamente se beneficiando do medicamento;

2) Uso não prescrito: você está usando um remédio que não foi feito para isso. Isso significa que não há evidência científica, a não ser que você considere o boca-a-boca dos cursinhos ou o correioweb como equivalente da revista Nature, de que o remédio faça qualquer efeito para uma pessoa não doente que o toma com o objetivo de aumentar as suas faculdades mentais. Se houvesse, você não acha que os gênios da indústria farmacêutica já teriam patenteado e vendido isso pra você? Seja menos inocente. O dinheiro é a mola que move o mundo.

3) O consumo de Ritalina no Brasil cresceu 775% nos últimos dez anos, graças, em grande parte, à irresponsabilidade dos médicos, que prescrevem o remédio para quem não precisa dele e depois ficam dando entrevistas “alertando para os riscos do medicamento” Mas, seja como for, o fato é que as pessoas o estão tomando fora da finalidade prescrita, não apenas no Brasil, mas em vários países, para aumento de produtividade no trabalho. Mas, por quê? Se os médicos alertam para os riscos e se a indústria farmacêutica diz que o remédio não é pra isso, por que as pessoas tomam? Por uma característica inerente ao ser humano, que é a de conseguir um apoio para fazer algo que ele não se considera capaz. Antigamente, as pessoas rezavam para ter força e perseverança para atingir um objetivo. Hoje, tomam Ritalina. Vivemos um tempo engraçado em que a “ciência” se transformou em religião. Você acredita nela apenas porque acredita, não porque tenha sido demonstrado que ela é consistente. Nós pervertemos a ciência para se tornar algo que ela não é.

4) Efeitos colaterais: eu acredito que todo mundo que toma isso está bem ciente dos riscos. A pessoa toma porque acredita que não vai acontecer com ele. Então, não vou me alongar muito aqui, porque não tenho como argumentar contra essa ideia. Só quero ter certeza que todo mundo está na mesma página. Então, perca 2 minutos para ler só o abstract deste artigo http://www.springerplus.com/content/3/1/286 . Vou transcrever o ponto principal: “There were 38 adults (20 men, 18 women), of which 32 (88%) off-label use. In adults, methylphenidate was prescribed for depression, and this practice was associated with serious adverse events of drug dependence, overdose and suicide attempt”. Na conclusão, consta o seguinte “In half the reports where the use was considered to be off-label, the ADR was classed as serious”. ADR são os efeitos colaterais (adverse drug reaction), o que significa que a metade das pessoas que sofreu efeitos colaterais por tomar ritalina teve efeitos que foram considerados sérios. Então, pense bem no que você está arriscando. Eu tive alunos que relataram ter sofrido efeitos colaterais sérios tomando esse remédio.

5) Interações medicamentosas e contra-indicações: segundo a Food and Drug Administration – FDA, a ritalina tem interações medicamentosas até com vitaminas e remédios para gripe (http://www.fda.gov/downloads/Drugs/DrugSafety/ucm089090.pdf). Além disso, o mesmo relatório diz que o remédio não deve ser tomado por “crianças que são muito ansiosas, tensas ou agitadas”. Será que quem estuda para concurso está ansioso ou tenso?

6) Supondo que você não se convenceu até aqui. Acha que, mesmo que não haja prova de que o remédio funcione, que vale a pena arriscar os efeitos colaterais, que incluem morrer, eu perguntaria, será que a vantagem é tão grande assim? Eu tenho minhas dúvidas. Uma coisa é um programador de computador ou alguém que está escrevendo uma tese (não, eu não estou tomando isso) tomar Ritalina e trabalhar 14 horas. Ele completa uma tarefa e ela está pronta. Eu não preciso me lembrar constantemente do texto que escrevi na semana passada. Será que estudar tanto tempo por dia permitirá que você efetivamente absorva aquilo que estudou? Eu acredito que você consiga ler 300 páginas, mas você vai se lembrar delas daqui a duas semanas? Lembre que, se você ler 300 por dia, são 3000 para absorver ao final de 2 semanas. Será que dá? Eu me arrisco a dizer que não. E ninguém disse, nem o seu colega de cursinho, que Ritalina melhora a memória, só a concentração. Então, talvez esse negócio fosse bom pra mim, mas certamente não é pra você, que tem mais preocupação em absorver o que estudou do que em simplesmente cumprir metas de páginas.

7) Se, apesar de tudo, você tem mais dinheiro que bom senso e acha que mesmo assim, vai levar vantagem tomando ritalina ou qualquer outro medicamento que supostamente vai te ajudar a passar em um concurso, por favor, pelo menos procure um médico e faça um acompanhamento sério. Não vá apenas para pegar a receita, que ele certamente vai dar se você pedir. Eu não conheço cargo público que possa ser exercido por defunto (embora talvez alguns efetivamente sejam).

Ritalina, meus amigos, é só um exemplo, talvez o mais dramático. Infelizmente, vivemos um crise de consumo de medicamentos no mundo dos concursos, estimulada pelas metas irrealistas, pela pressão pela aprovação, pela noção equivocada de que o número de páginas e o colega da cadeira ao lado são como os jogadores do time adversário, que você precisa derrotar. No fim, não há nada de muito novo nisso. É só uma nova manifestação de um velho padrão de comportamento. Dê-me uma tarefa difícil e eu lhe mostrarei alguém disposto a vender um caminho fácil.